Ubaldino Pereira está chateado. “Eu vendo 300 iogurtes e tiro R$ 80 de lucro por dia”, diz o ambulante, parado num semáforo da Avenida Giovanni Gronchi, na zona sul de São Paulo. Nos últimos quatro anos, ele foi um dos milhares de brasileiros que vestiram o uniforme azul e rosa da marca Icegurt, em grandes capitais brasileiras. O que parece um negócio pequenininho, na verdade, é a ponta visível no Brasil de uma multinacional colombiana, a Quala Alimentos.
A empresa é uma das maiores anunciantes de TV daquele país, ganhou prêmios do Fórum Econômico Mundial, tem negócios em boa parte da América Latina, fabrica centenas de itens – de sopas a creme dental – e faturou US$ 370 milhões em 2012, segundo a Superintendência de Sociedades da Colômbia (vinculada ao Ministério do Comércio, Indústria e Turismo). Chegou ao Brasil em 2008 e no ano seguinte lançou o único produto que venderia por aqui: os “geladinhos” de iogurte – ou Icegurtes –, que eram oferecidos por R$ 1 em faróis e praças. Ubaldino acha a guloseima um sucesso. “Sempre que tem outros vendedores de sorvetes do meu lado, nenhum bate o Icegurt”, diz. Para os donos da Quala, porém, a operação brasileira não andava assim tão saborosa. A empresa deixa o país no fim do mês, depois de seguidos prejuízos (pelo menos é o que afirmam). “Cheguei a chorar quando me falaram que iam embora”, diz o ambulante.
A multinacional não sabe exatamente quantas pessoas vendiam Icegurt no Brasil. Um diretor estima que sejam mais ou menos 2 mil. A Quala só lida com os distribuidores, que eram 274, concentrados em Minas Gerais e São Paulo. Cada um tinha seu grupo de ambulantes. “Alguns chegavam a ter 60”, diz Mano de Oliveira, dono de uma distribuidora de Icegurt na região de Santo André (SP). A empresa vendia cada iogurte a R$ 0,56 para o distribuidor, que o repassava a R$ 0,65 para os ambulantes venderem a R$ 1. Bem, não exatamente nessa ordem. Ao retirar os Icegurts na distribuidora, o ambulante “pegava emprestado” o produto e depois devolvia somente o lucro do distribuidor. Um detalhe sutil, mas evitava o ato de receberem um “pagamento” no fim do dia, o que poderia caracterizar vínculo de emprego.
A decisão de ir embora, comunicada de supetão em meados de abril, não aborreceu só quem estava na rua oferecendo os geladinhos, como Ubaldino. “Eu tinha acabado de fazer um contrato de aluguel de dois anos”, diz um distribuidor que não quis se identificar, para quem trabalham oito revendedores. “Um dia eles entram aqui e dizem: ‘vamos embora, não vai mais ter Icegurt’. Como eu faço?” Mano, de Santo André, conta que até o líder de sua região (funcionário da empresa que lida com distribuidores) se disse pego de surpresa. “Ninguém entendeu nada”, diz.
A grande dúvida dessa turma é: por que vão embora, se o produto era um sucesso? “Eu tinha 15 ambulantes, que vendiam entre 40 mil e 50 mil unidades por mês, o que me dava um lucro mensal de R$ 5 mil”, diz Mano. “Todos com quem falamos dizem que vendia bem”, afirma o advogado Antonio Conte, que vai representar cerca de 50 pessoas numa ação coletiva contra a empresa.
A Quala, porém, alega que a aventura nos semáforos brasileiros nunca colocou 1 real no bolso da companhia. “Sempre tivemos prejuízos, foram quase sete anos de investimentos. O futuro não seria rentável, também”, diz Vanessa Oliva, diretora de RH. Para ela, “a realidade econômica, a carga tributária e custos muito fortes e pesados” explicam os resultados. “Não aguentamos”, afirma. O presidente da Quala no Brasil, o colombiano German Cagua, aceitou dar entrevista apenas por e-mail – segundo ele, por política da empresa. “[Foi] um problema de rentabilidade, mesmo”, diz. “Altos custos, altos impostos e um preço de venda baixo, de R$ 1. Durante os seis ou sete anos que vendemos, não conseguimos ter lucratividade.” Perguntado se não faria sentido esperar a Copa do Mundo e ir embora depois, já que os ambulantes previam boas vendas com uma pipoca que seria lançada no período, Cagua diz: “todos os meses perdemos dinheiro e não conseguimos suportar”.
Se o problema foi mesmo o balanço, isso não parece ter afetado os negócios do grupo como um todo. De acordo com o órgão de controle colombiano, o lucro operacional da Quala cresceu 26% em 2012 na comparação com 2011, chegando a US$ 13 milhões. Entre 2008 e 2012, enquanto investia no Brasil, as vendas totais cresceram 46%, segundo informações divulgadas para a imprensa colombiana.
Entre os poucos dados que aceitou divulgar, a empresa afirma que vendeu mil toneladas de Icegurt no Brasil em 2013. Chegou a pensar em trazer outros produtos – o Icegurt era a “estratégia de entrada no Brasil”, diz o presidente – e vender em supermercados. “Fizemos pesquisas com muitos produtos das categorias que a empresa vende em outros países, mas não teriam margem em função dos impostos”, diz Vanessa. “O varejo seria ainda menos rentável.”
Mas a forma como a Quala está batendo em retirada tem revoltado os ex-parceiros. A reportagem teve acesso a um modelo de carta que a empresa teria entregado aos distribuidores, pedindo que reescrevessem aquilo de próprio punho. “Comunico minha intenção de rescindir o contrato de revenda, pois quero dedicar meu tempo a outras atividades”, diz o texto. “Eles estão sendo obrigados a assinar, como se fossem eles que estivessem rescindindo o contrato. São pessoas humildes, que não têm conhecimento de leis e direito”, diz Conte. O advogado também acredita que o contrato inicial é “desproporcional”, com muitas vantagens à empresa, e pode ser anulado pela Justiça. “Exigiam que alugassem imóveis, que são contratos longos, mas diziam que a empresa podia ir embora a qualquer tempo, sem multas”, afirma.
“Toda vez que encerramos uma relação, as partes sentem. Não foi uma decisão fácil para ninguém”, diz Cagua, ao ser perguntado sobre essas questões. Ele diz que o processo segue a lei. “A Quala cumpriu com tudo e não deixou de pagar 1 real, mesmo estando falida. É uma empresa multinacional que cumpriu com suas obrigações no país e vai embora sem planos de retorno, pelos altos custos e excessiva carga tributária.”
Mas o drama maior está na ponta final dessa cadeia de vendas. Pessoas da extrema base da pirâmide social viram no Icegurt uma espécie de última chance de prosperar, ainda que de centavo em centavo. Mano lembra a chegada da empresa. “Eles tinham uma proposta muito legal, começaram trabalhando com moradores de rua. Era uma coisa ‘social’, além de um negócio”, diz. “Era uma última porta em que essas pessoas iam bater.”
“Está todo mundo chateado”, diz Ubaldino, que antes trabalhava como auxiliar de limpeza. “Teve gente que passou mal com a notícia. Eles eram uma empresa legal, tinham ‘muita cabeça’. No inverno, pagavam mais [35 centavos, ante 25 no verão] para incentivar a gente”, diz. Houve época, segundo ele, que a turma ganhava café da manhã para ir trabalhar bem alimentado. “A gente não era registrado, mas os distribuidores pagavam no mesmo dia, então era bom”, afirma o ambulante.
Agora, cada um pretende se virar como pode. Em Santo André, Mano já negocia geladinhos de açaí com um novo fornecedor paraense. “Vamos tentar não perder a equipe, mas é difícil”, diz. “O Icegurt era um produto campeão”.
Copiado de:
http://epocanegocios.globo.com/Informacao/Dilemas/noticia/2014/08/veio-viu-e-vazou.html